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Poesia 2

Amor-amaro

Amor-amaro
Por que amou por que a!mou
se sabia
proibido passear sentimentos
ternos ou
nesse museu do pardo indiferente
me diga: mas por que
amar sofrer talvez como se morre
de varíola voluntária vágula ev idente?"

ah PORQUEAMOU
e se queimou
todo por dentro por fora nos cantos nos ecos
lúgubres de você mesmo (o,a)
irm(ã, o)retrato espéculo por que amou?
se era para
ou se era por como se entretanto todavia
toda vida mas toda vida
é indagação do achado e aguda espostejação
da carne do conhecimento, ora veja
permita cavalheir(o,a)
amig(o,a) me releve
este malestar
cantarino escarninho piedoso
este querer consolar sem muita convicção
o que é inconsolável de ofício
a morte é esconsolável consolatrix consoadíssima
a vida também
tudo também
mas o amor car(o,a) colega este não consola nunca de
núncaras.

O sofrimento amoroso é descrito nesse poema, cujo título é Amar-amaro. É a
decepção amorosa e o amargor que ela traz que predominam em todo o texto. Para o poeta, o amor não consola “nunca de núncaras”; assim, o ato de amar só pode ser realmente amaro. Percebe-se com a justaposição amar-amaro que, mais do que caracterizar o substantivo amar, o adjetivo amaro o contém, ou seja, não existe amar que não seja amaro.
No pessimista poema, Drummond pergunta a si mesmo no verso inicial: “Por que
amou por que a!mou”, mostrando toda sua originalidade, ao intercalar na forma verbal
amou o ponto de exclamação (a!mou).O ponto de exclamação mostra que, mesmo sendo
amaro, o amor é lembrado com certa nostalgia. Parece que a lembrança de um amor vem
acompanhada de um suspiro.
A seguir, chama-se atenção para o adjetivo desesperados, grafado de ponta-cabeça,
acentuando o desespero daqueles que amam. A idéia de desespero se reforça com a quebra do vocábulo evidente – nada mais é evidente. A sonoridade obtida com a aliteração do /v/, na seqüência “varíola voluntária vágula ev”, pode ser associada ao sopro, ao expirar. Além disso, ev é forma equivalente de eu e a parte idente pode ser relacionada à identidade. Embora distante da origem, pode-se entender que a desagregação ev/idente poderia estar associada à identidade do eu. O eu que ama e sofre como se morresse de varíola, parece estar aos pedaços.
O jogo lúdico continua quando, com letras maiúsculas, ele grita: “PORQUEAMOU”. O inconformismo pelo fato de o amor ser amaro e não consolar “nunca de núncaras” é percebido com a criação do verbo porqueamar. Trata-se de um verbo que soa como um castigo para os que amam e não são amados: quem ama sofre e se queima. Para Drummond, o ato de amar é comprado a uma “aguda espostejação da carne do conhecimento”. O sufixo -ção é extremamente produtivo na formação de substantivos deverbais, ao lado de –mento. Por serem concorrentes, é comum um bloquear o outro. No poema, Drummond prefere espostejação, embora a forma dicionarizada seja espostejamento. Pode-se dizer que por causar estranhamento, a forma escolhida consegue transmitir uma idéia de intensificação.
Para reforçar a idéia de que o amor produz muitos males, e, principalmente um malestar muito grande, para o poeta, um “malestar escarninho cantarino piedoso”. Como malestar, na verdade, há uma nova apresentação para a forma dicionarizada mal-estar. O significado mantém-se o mesmo: 1. indisposição ou perturbação orgânica; doença de pouca gravidade; incômodo. 2. ansiedade mal definida; inquietação. 3. situação incômoda; constrangimento, embaraço. Mas a união dos dois elementos sem hífen agrega graficamente e sonoramente os dois elementos, reforçando a idéia negativa.
Recorrendo à ironia, o poeta diz que se trata de um malestar cantarino. O adjetivo tem uma carga positiva e qualifica o substantivo malestar (negativo), que só é cantarino por ser escarninho, sarcástico. Toda essa situação é “inconsolável de ofício”, diz o poeta. Nada se pode, portanto, fazer. Até a morte é esconsolável, mas o amor não. O prefixo es-, de origem latina, indica, segundo Houaiss, “movimento para fora, separação, transformação, intensidade, ausência, negação”. Na formação esconsolável, ele indica mudança de estado. Ao criar o vocábulo esconsolável, CDA, na verdade, faz um jogo com o radical consol-, encontrado em consolar, inconsolável e consolatrix e, sobretudo, com o vocábulo inconsolável. Há coisas que são inconsoláveis, ou seja, impossíveis de serem consoladas. Já a morte é esconsolável, ou seja, é possível uma mudança de estado; logo, ela pode ser consolada, por mais difícil que seja e exija um certo esforço.
O poeta utiliza uma série de adjetivos para caracterizar a morte, dentre eles consolatrix. (a que consola) O amor não consola “nunca de núncaras”, mas a morte é consolatrix assim como Nossa Senhora, que mesmo tendo o filho morto consola os aflitos (consolatrix aflictorum), como diz um dos versos da ladainha.
Em Amar-amaro, Drummond utiliza a forma consoadíssima para referir-se à morte; “a morte é esconsolável, consolatrix, consoadíssima”. No Houaiss, consoada é um substantivo e significa: pequena refeição noturna, em dia de jejum ou ceia da noite de Natal. Não é, portanto, esse o significado proposto por CDA. Para o poeta, a morte e a vida têm consolo, mas o amor não. Dizer que a morte é consoadíssima, é dizer que ela pode ser aceita, está em total consonância, em total conformidade com a vida. Drummond, com a escolha de consoadíssima, pode estar referindo-se também ao poema Consoada (Opus 10), de Manuel Bandeira, em que o poeta pernambucano fala da chegada da morte: “Quando a indesejada das gentes chegar/ (Não sei se dura ou caroável),/ Talvez eu tenha medo./ Talvez sorria, ou diga:/ - Alô, iniludível!”.
Como o amor pode atingir qualquer pessoa, independentemente do sexo, Drummond cria um feminino para cavalheiro (cavalheira), ao utilizar a desinência de gênero entre parênteses: cavalheiro (a). Com esse recurso, o poeta, que se dirige ao leitor,faz questão de mostrar que os males do amor ocorrem não só com homens, mas também com mulheres.
Já em relação à flexão de número, percebe-se, na pluralização do advérbio nunca a busca da expressividade. Além da criação do plural para o advérbio (nuncas), Drummond o estica, formando a proparoxítona núncaras que, por ser a última palavra do poema, parece que o leva realmente ao infinito.

fonte: http://www.fflch.usp.br - artigo de Elis de Almeida Cardoso, "ESCOLHA E CRIAÇÃO LEXICAL:
O AMOR NA POESIA DE DRUMMOND" - http://www.fflch.usp.br/dlcv/enil/pdf/Artigo_Elis_de_Almeida_Cardoso.pdf

Um comentário:

Wyroni disse...

Achei muito boa essa explicação... :)
Realmente consegui mostrar o entendimento do poema ao leitor de forma clara e abrangente.

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